O Taoismo se apresenta como a Tradição do leste longínquo, ou como costuma se apresentar nacionalmente, faz parte da civilização da China. Este país continental e antiquíssimo apresenta uma série de amalgamas de tradições diversas e uma característica bem peculiar em relação as demais nações da modernidade: a China, mesmo hoje no ‘final dos tempos’, é possivelmente a sociedade mais Tradicional existente. Sua origem civilizatória, como compreendemos, remonta ao incrível ano de 5.000 antes de Cristo, sendo que seu período anti-histórico (isso é, anterior as quantificações dos historiadores) é bem mais longínquo; porém não se enganem, sua gênese Tradicional é tão alinhada com a Tradição Primordial quanto qualquer outra sociedade, o fluxo de diferentes povos pela região assegurou uma diversidade de pontos de vista virtualmente infinitos das Leis Imutáveis do Eterno, dentre os quais, sua soma resultante nas concepções primordiais da Doutrina Taoista como conhecemos hoje. Diferentemente das demais Tradições, o Taoismo apresenta uma configuração bem única; este não é uma Tradição com estruturas exotéricas e esotéricas, mas uma via específica, uma via propriamente esotérica em si mesma. Essa característica curiosa confere ao Taoismo a característica de Tradição, de certa forma, mais pura, pois em síntese, ela é o Centro Tradicional apresentado de modo integral, uma via pura, sem formas externas que podem dificultar ou aumentar os pontos de distorção para a compreensão interna das Doutrinas. Não. O Taoismo é a Via. Sua contraparte de caráter exotérico se encontra em uma outra Tradição completamente à parte tão difundida na China quanto qualquer outra, o Confucionismo, o qual abordaremos adiante.
Em um primeiro momento cabe falarmos do seu fundador, porém como todas as ‘autorias’ do mundo Tradicional, este não é bem uma pessoa, mas uma entidade, uma amalgama de homens sábios que estruturaram um pensamento corrente atendendo apenas a Via Perene da Tradição Primordial, tal como Homero, Vyasa e Zarathustra, Laozi (老子) não era um indivíduo, mas um coletivo. Seu nome significa simplesmente Velho Mestre, e aparece como sendo o autor do Tao Te Ching (道德經), o livro não tem uma tradução adequada, tal como o termo sânscrito Dharma (धर्म). Tao não tem tradução específica, mas podemos dizer nesse sentido que significa basicamente “Caminho”; Te, por sua vez, apesar de curto é mais complexo, sendo a melhor aproximação possível “fluxo sem hesitação”, e Ching fecha a sentença como: “Livro do Caminho do Fluxo sem Hesitação”. Assim sendo, devemos elaborar alguns pressupostos básicos do Taoismo. A Doutrina reconhece todos os seus aderentes como iniciados, portanto, há uma prescrição para que o aderente do Taoismo seja num primeiro momento um sábio, desse modo, é imprescindível que o taoista para adentrar nas práticas seja uma pessoa com alto grau de desapego e superação do ego, para que assim ele possa executar as práticas ritualísticas e iniciáticas da senda taoista apropriadamente. Dentre os pressupostos está o exercício da meditação, que ajuda o praticante a alcançar e reconhecer a consciência do que se chama nessa via de O Rei de Jade (玉皇). Como escreve o mestre Wu Jyh Cherng: “Didaticamente, consideramos que a consciência que está numa pessoa pode estar no nível e na realidade da Consciência Universal, sintonizada no nível do Rei de Jade; a esta consciência nós chamamos de ‘espírito’, é o próprio Shen [Divindade] que está em nós.” (Iniciação ao Taoismo, 2000).
Deste modo, o dito taoista expressa: “O Rei de Jade é a consciência pura e serena, repleta de vida, que governa todas as manifestações.” Ele é a consciência plena em que o taoista deve adentrar, pertencer e ser. O Rei de Jade, na teologia taoista é assistente do grande Yuanshi Tianzun (元始天尊), um dos integrantes da “Trimúrti” taoista: Os Três Puros (三清), esses sendo integrados por Lingbao Tianzun (靈寶天尊) e Daode Tianzun (道德天尊) juntamente ao supracitado. Essa trindade taoista tem um significado muito didático para o mundo da Tradição. Tal como nas Doutrinas Hindus encontramos a Trimúrti de Brahma (ब्रह्मा), o criador; Vishnu (विष्णु), o preservador e Shiva (शिव), o destruidor, tal é a relação dos Três Puros com a realidade material. Em termos metafísicos: O Tao é relativo a dois aspectos, um manifesto e um não-manifesto; é dito no Tao Te Ching: “O Tao que pode ser nomeado não é o Tao verdadeiro.“, logo, compreendemos que aqui há uma realidade eterna e imutável e outra finita e mutável, como indicam os princípios metafísicos básicos. Em seguida temos a consideração de que o Tao (aqui o manifesto) se fez dois, estes sendo Yin (陰) e Yang (陽), estes relativos aos conceitos em sânscrito de Prakriti (प्रकृति) e Purusha (पुरुष). E é dito ainda que dois fizeram três, aqui retornamos aos Três Puros. Desse modo, o Taoismo descreve a sua estruturação metafísica, partindo do pressuposto não-manifesto até o manifesto e seus desdobramentos cosmológicos comuns: Yin e Yang criam a realidade enquanto Os Três Puros condensam-na.
Ainda na perspectiva cosmológica da Doutrina Taoista temos a concepção de Pa Kua (八卦), está diz respeito aos Oito Trigramas com os conceitos fundamentais que ordenam a realidade. Apesar de não elaborarmos cada um adequadamente aqui será necessário cita-los pela função didática, temos pois: Kūn (坤), o solo; Gèn (艮), a montanha; Kǎn (坎), a água; Xùn (巽), o vento; Zhèn (震), o trovão; Lí (離), o fogo; Duì (兌), o lago e Qián (乾), o céu. É desnecessário mencionar que essas trigramas tem um valor simbólico associado, complementarmente com a analogia (entendida no sentido tradicional); invoca-se com isso o poder da Grande Tríade, está sendo representada por Céu-Homem-Terra, não no sentido naturalista possível, mas no sentido metafísico de Espírito-Síntese-Substância. Como escreve Jean C. Cooper: “Homem aqui não é o ‘homem comum’, mas o Sábio Taoista ou O Homem Perfeito de Confúcio, que era simbolizado pelo Imperador, O Filho dos Céus. O Homem Perfeito [O Homem da Síntese] é a conquista do potencial da natureza humana em todas as suas possibilidades dentro de Yin-Yang.” (An Illustrated Introduction to Taoism, 2010).
Pois então, tendo em vista as estruturas metafísicas e cosmológicas do Taoismo, e compreendendo como ele se ordena em relação aos Princípios Tradicionais, qual é por fim o modo de ação do taoista? Como ele interage com o mundo estando em tão grande distanciamento? A resposta está, como para tudo nessa Via, no Tao Te Ching: “O Tao que nunca age, ainda sim, através dele faz todas as coisas serem feitas.“, o Tao que não pode ser nomeado é o Primeiro Motor Imóvel de Aristóteles, a Divindade no final da Trindade, o Tawhid do Islã, o Um de Platão, em suma, enquanto esse nome compreende algo, Deus. Assim sendo, como uma Via Iniciática, o taoista deve agir sempre visando a sua apoteose, sua união com o Divino. Desse modo, aplicando o conceito de Wei Wu Wei (為無為), significando por aproximação algo como ‘ação-pela-não-ação’. Este conceito é o conceito chave, pois coloca no indivíduo uma característica muito curiosa de desapego extremo, é através dessa conquista de si mesmo, ao ponto de pela não-ação, agir no mundo com tremenda força apenas pela boa e sábia elaboração das questões emocionais e psíquicas, em síntese, a não-ação aqui compreendida é a conquista da alma, a conquista da personalidade que permite a integração do espírito com o Absoluto, com o Tao que não pode ser nomeado, se adequando assim a todas as contingências da vida. O domínio completo desse método equivale em uma perspectiva comparativa ao conceito de Liberação, ou Moksha (मोक्ष), da Tradição Hindu. “Aquele que domina a si mesmo domina o mundo“.
Confucionismo
Cabe aqui, por fim, fazer uma breve prescrição da via externa da China, tal via é relativa a realidade exotérica do povo chinês, sendo prescrito como uma exigência em toda a comunidade tradicional chinesa que mesmo hoje, após anos de gradual impressão do materialismo no seio da comunidade do extremo oriente, ainda se mantém vivo nas relações interpessoais em qualquer circunstância, especialmente no interior do país, longe dos grandes centros urbanos. O Confucionismo foi fundamentado por Kung-Fu-Tzu (孔子), ou como nos habituamos no ocidente, Confúcio. Tal doutrina não apenas carrega o nome de seu fundador, mas é a literal prescrição desse grande mestre para o que ele definia como sendo ‘as relações com o outro’ na comunidade. Em suma, o confucionismo atua dentro da Doutrina de Li (禮), sendo uma palavra sem definição específica, ela é preservada e designada como tendo duas dimensões: uma horizontal, de ética, moral e costumes; e uma vertical, de valores e atos ritualísticos, com um caráter quase religioso (no sentido ocidental). Basicamente, os preceitos de Li prescrevem o comportamento que se deve adotar em determinadas situações, como o trato com os mais velhos, o comportamento em determinado lugar, o tratamento de hóspedes, dentre outras condutas; já a parte ritualística diz respeito ao culto aos ancestrais, o respeito e observância pela herança ancestral, envolvendo o respeito a hierarquia e de acordo com a conduta que os mais velhos, especialmente os familiares, indicarem para os mais novos.
Confúcio ainda da ênfase no caráter político da sociedade que deve, em última análise, ser comandada por alguém de “Direito Divino”, este é quem Confúcio denomina como o ‘bom líder’, ou o ‘governante ideal’, relativamente ao ‘Filósofo-Rei’ de Platão, o Governante de Confúcio é alguém que possui um ‘mandato do céu’ para tal; como é dito nos Analectos: “Se o governante for por Direito [Divino], tudo correrá bem mesmo se ele não der nenhuma ordem. Mas se o governante não for por Direito [Divino], mesmo que ele dê ordens, elas não serão obedecidas.”, aqui, Confúcio estabelece um limite, onde para ele o Homem Absoluto é um sábio, e essa sabedoria deve ser ordenada de cima. Logo, temos aqui uma síntese, pois ora, se rememorarmos o texto acima, Laozi prescreve que aquele que deseja embarcar no caminho do Tao, deve antes de mais nada ser um sábio, e Confúcio postula que o objetivo de sua Doutrina de Li é fazer homens sábios. Desse modo, o Confucionismo, a via exotérica da Tradição Chinesa, termina onde o Taoismo, a via esotérica, começa.



