Formas Tradicionais: Budismo

Para todos os efeitos, respondendo dúvidas possíveis já de antemão, estarei utilizando a transliteração comum do inglês para qualquer termo, e a grafia do Devanágari sânscrito mesmo para termos em Páli, apesar da distinção dessas duas línguas, e da sabida resolução de que o Páli é uma forma de sânscrito utilizada apenas pelo Buda, utilizo pois a forma sânscrita para toda e qualquer definição de conceito, mesmo quando em Páli, por uma simples questão de esmero, para não causar confusões intercambiando ambas as línguas. Qualquer comentário douto sobre a natureza linguística, semântica, de tradução e de transliteração dessas línguas será bem recebido nos comentários.

O Budismo, enquanto Tradição, se configura através das Doutrinas Védicas, desaguando na figura Suprema de seu fundador. Para compreendermos melhor esse esquema tradicional devemos nos debruçar em alguns temas pontuais. A começar pela figura que da nome a doutrina. Sidarta Gautama, o Buda (बुद्ध), foi um príncipe dos Shakyas (शाक्य), clã guerreiro de uma região no atual Tibete e que tem como característica não estarem submetidos as Leis de Manu, o que os caracteriza como não-Védicos, sendo sua origem mista, uma fusão dos Arianos com os Munda (população nativa do leste indiano); apesar disso, atribuísse à nobreza dos Shakyas como sendo de origem pura, no caso, tendo as raízes arianas preservadas. Tendo isso em vista, podemos considerar o Budismo como sendo a primeira religião com um fundador-transmissor, isto é, uma Tradição baseada nos ensinamentos de um mestre, evento que viria a acontecer alguns séculos após o surgimento do Buda na Índia, na região da atual Palestina, com a figura de Jesus Cristo.

Com isso em vista, podemos elaborar um pouco sobre as fontes e distinções fundamentais do Budismo e do Brahmanismo. Enquanto Tradição, é importante desconstruir o engano de que o Budismo seria uma “heresia dos Vedas”, ou uma Tradição Heterodoxa; em verdade, o Buda veio para afirmar a Lei que vem dos Vedas, porém ele distingue totalmente dessa Tradição, pois adiciona um elemento de Revelação. Todas as Tradições enquanto verdadeiras possuem dois atributos magnos: elas são Ortodoxas e Reveladas. As Doutrinas Hindus possuem essa característica, porém a revelação em todas essas doutrinas é apenas uma, a Védica; o Budismo apresenta uma nova fonte de Revelação, encontrada no Buda, o que produz os Nikaya (निकाय), conhecidos também como o Cânone Páli, que são em síntese as palavras do próprio Sidarta.

O Cânone é também conhecido como Tripitaka (त्रिपिटक), isto é, ‘as três cestas’. A primeira parte é o Sutta Pitaka (सूत्र पिटक), que são os ensinamentos atribuídos ao próprio Buda ou aos seus seguidores mais próximos, essa categoria se divide em cinco coleções, ou Nikaya; são elas o Digha Nikaya, Majjhima Nikaya, Samyutta Nikaya, Anguttara Nikaya e Khuddaka Nikaya, sendo todos textos extensos onde se produz aquilo que é a sabedoria do próprio Buda. A segunda parte nomeia-se Vinaya Pitaka (विनय पिटक), trata-se de um conteúdo doutrinal, onde existem orientações para a vida dos monges e monjas, na Tradição Budista denominados como Bikkhu e Bikkhuni, além de orientações gerais para a Sangha (संघ), que é a comunidade budista. E a terceira parte chama-se Abhidhamma Pitaka (अभिधम्म पिटक) , que correspondem a textos analíticos e sistemáticos sobre a Tradição e Doutrina, a maior parte destes textos tem caráter litúrgico. Pois existem ainda uma infinidade de textos chineses, tibetanos e do tantra que compõe as demais Doutrinas Budistas, porém que não vamos abordar em detalhes aqui, mas no contexto de cada vertente.

Os Três Veículos

As fontes primordiais do Budismo se encontram em três grandes divisões, esses três veículos operam de modo independente e linear chamados de Yana (यान), onde é possível vislumbrar uma forma de respeito mútua, porém sem deixar de existirem discordâncias. A primeira escola denomina-se Hinayana (हीनयान), que significa algo como “veículo menor”. Existe uma longa discussão sobre se é adequado o uso desse termo ou não, porém não entraremos nesses meandros aqui, sendo essa a nomenclatura selecionada pois contempla aquilo o que seria a vertente budista mais comum aos antigos, chamada de Shravakayana (श्रावकयान), e seguidores dos Nikaya na atualidade, conhecidos como Theravada (स्थविरवाद). Em resumo, esta vertente segue basicamente o Cânone Páli e os comentários de estudiosos e autoridades que seguem exclusivamente esses textos, havendo pouco ou nenhum diálogo fora do Tripitaka.

O segundo veículo denomina-se Mahayana (महायान), esta é a maior vertente atual do Budismo no mundo, e contempla uma infinidade de textos derivados da Índia e China, compondo o Cânone Mahayana. Existe uma discussão quanto a origem do Budismo, e muitos seguidores do Mahayana argumentam que os textos deste veículo se apresentam como mais antigos que o próprio Cânone Páli, porém seguem-se argumentos contrários a essa afirmação. Em verdade, pouco importa qual veículo é mais antigo, pois a realidade é que cada um diz respeito a uma forma específica de se ver a realização. O “veículo menor” descrito no Hinayana é dito como a Liberação Individual, uma forma de aplicação das técnicas meditativas para se alcançar a ascese de modo individual, na perspectiva de se tornar um Arhat (अर्हत्); enquanto no Mahayana há uma tendência a Liberação como forma de atingir os demais seres viventes pelo caminho da sabedoria e compaixão. Nessa perspectiva temos uma distinção mais clara, porém ainda obscura no que se refere as práticas, para compreender melhor esses caminhos faz-se necessário compreender o terceiro caminho.

O Vajrayana (वज्रयान) significa “veículo do ‘raio’, ‘diamante’ ou ainda ‘indestrutível’”, e corresponde a vertente do Budismo que deriva do Tantra, utilizando uma série de meios hábeis ou Upaya (उपाय), que são nada mais do que técnicas e métodos para o aprimoramento dos meios para se obter a Liberação. Os textos Vajrayana são de uma variedade ímpar, e o que mais contribui para isso é que além de considerarem o Tripitaka, consideram ainda todos os textos principais do Mahayana, além dos Tantra, o que torna o Vajrayana a tradição mais extensa dentro do Budismo. Existem diversas derivações dentro do Vajrayana, havendo várias escolas dependendo da localidade; essa vertente vai desde o Tibete até a China, Mongólia, Coreias e Japão, e tem denominações específicas para cada região, a mais conhecida talvez seja o Budismo Tibetano, que se divide majoritariamente em Nyingma, Sakya, Kagyu e Gelug. Essa forma de Budismo é ainda denominada ‘Budismo Esotérico’, especialmente por Ocidentais.

Os Três Corpos

Dentro da Tradição do Mahayana encontramos uma estrutura metafísica muito pertinente para a compreensão e visualização mais ampla do Budismo enquanto Tradição conectada a Unidade Transcendente, tal é o significado do Trikaya (त्रिकाय), ou Os Três Corpos. O primeiro denomina-se Nirmanakaya (निर्माणकाय), este é o mais simples, é a manifestação do Buda enquanto ser vivente, no tempo e espaço, é um aspecto da natureza búdica e o mais baixo dos três, é comumente associado com a vinda recente de Sidarta Gautama, enquanto manifestação corpórea e física do Supremo Dharma. O segundo aspecto chama-se Sambhogakaya (संभोगकाय), é a manifestação da Divindade do Buda, geralmente correspondente ao Buda Amitabha (अमिताभ), é a natureza do Buda enquanto irrestrita na manifestação, cumprindo um papel de ‘Consciência Universal’ e Ilimitada do próprio Sidarta, é também lembrado como uma categoria de Budas Divinos dentro do Reino dos Budas na vertente Terra Pura.

O terceiro e último nível da Doutrina do Trikaya denomina-se Dharmakaya (धर्म काय), essa é a denominação mais elevada para se falar da Natureza de Buda, é aqui onde a realidade material e imaterial, o Ser e o não-Ser se encontram unificados na clássica definição de Transcendência Imanente. O Dharmakaya corresponde tradicionalmente ao Buda Vairocana (वैरोचन), que é o correspondente mais próximo a uma definição de Deus Absoluto Ocidental, ou Brahma como encontramos nas Doutrinas Hindus. Diversas vezes pelos sutras é lembrado como o Buda Primordial, ou o Buda em sua forma cósmica, está particularmente associado com o Nirmanakaya do Buda Gautama.

Nirvana & Anatman

Em verdade, as distinções do Budismo enquanto Tradição e doutrina difundida através dos séculos é muito vasta, e impossível de ser contemplada em sua totalidade, basta que se saiba desses três veículos Hinayana, Mahayana e Vajrayana, e quem quer que queira se aventurar em qualquer um desses veículos terá estudos e práticas para muito além de uma vida só. Desse modo, vale conjeturar termos centrais para o Budismo, de modo a dar profundidade a teologia budista. O primeiro é o conceito de Dharma (धर्म), extremamente vasto e ligado com todas as Tradições do oriente distante, Dharma significa algo como “Verdade Universal Eterna”, e é ditame mestre do Budismo com que cada praticante faça cumprir o Dharma das coisas, vivendo de acordo com a Verdade. E vale citar também a definição de Samsara (संसार), que é basicamente o mundo manifesto, onde ocorrem os diversos ciclos de existência.

Há ainda os conceitos das Quatro Nobres Verdades: são elas Dukkha (दुःख), que significa algo como ‘sofrimento’, este é condição intrínseca e imanente do próprio Samsara; Tanha (तृष्णा), significando ‘desejo’ ou ‘sede’, esta condição é provocada por Dukkha, e é a causa da geração de apego nas coisas mundanas; Nirodha (निरोध), significa algo como ‘cessação’, é a percepção de que o sofrimento pode ser encerrado pela renúncia ao desejo; e Magga (मार्ग), é o caminho que leva ao confinamento do desejo, e por consequência, o encerramento do sofrimento. Essas definições encontram respaldo em todos os três grandes veículos do Budismo, porém cada um terá uma forma mais eficaz de condensar a realização desses ensinamentos, seja no Nobre Caminho Óctuplo ou no Caminho do Boddhisattva, o objetivo máximo da doutrina budista é escapar do Samsara e por fim de Dukkha, até ser atingido o ponto mais alto dessa busca, o Nirvana (निर्वाण), que é nada mais que a extinção; a realização do Anatman (अनात्मन्), o não-ser.

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